Essa manhã o vento trouxe a meus pés um desses jornais gratuitos distribuídos em sinais de trânsito. Supersticioso como sou, não desdenhei da leitura encardida de poeira. E ao passar a vista por uma das páginas, meus olhos fotografaram as palavras "pé" e "laranja" numa mesma linha. O coração bateu mais forte... Seria coincidência?
Fixei a vista e não tive dúvida: "Meu Pé de Laranja Lima". Aquele título mágico pintado num jornal tão atual... Mas do que se trataria aquela nota?
O FILME!!!! Será?!?! N-Ã-O A-C-R-E-D-I-T-O !!!! O FILME!
Eu sabia do filme! Soube há mais de um ano enquanto fazia buscas no Google para meu TCC sobre o livro e a obra do Zé Mauro. Eu tenho essa intimidade com ele: não o chamo José Mauro de Vasconcelos. Nem Zezé. Para mim ele é o Zé Mauro...
E o trato como um amigo, pois vivemos ambos infâncias de pés descalços, de fazer arte na rua, de bolas de gudes e pipas, de palmadas. Ele viu o Mangaratiba feroz cruzando Bangu. Eu vivi minha infância entre Paraty e Rio de Janeiro, namorando as intermináveis composições cheias de minério sobre os derradeiros trilhos em Mangaratiba.
Zé Mauro teve a Rosinha. Eu desci inúmeras canoas areia abaixo e remei as águas calmas da baía do Saco da Velha, em Paraty.
Ambos entrávamos no mato de facão e calças compridas (para não voltar com as pernas cheias de arranhões da mata e carrapichos). Saíamos com cachos de banana e tirávamos a cica das mãos com óleo de cozinha (porque água só piorava o visgo...)
Somos ambos simples em nossas visões do mundo. Nada de riquezas. Nada de frescuras. Só a liberdade de correr pro mato quando a vida na cidade grande enlouquece...
Todas essas semelhanças me fazem procurar cada vez mais estar em contato com seu mundo, procurar mais histórias, como um filho que tenta se parecer com o pai que nunca conheceu.... E, dotado deste espírito, recebi a notícia da refilmagem de Meu Pé de Laranja Lima, que seria exibida durante o Festival do Rio 2012.
Estou voltando nesse momento do Cinemark Botafogo. Infelizmente desolado...
O filme original, de Aurélio Teixeira, não dispunha de tecnologia ou de conhecimento técnico (provavelmente nem mesmo de recursos financeiros...) para retratar o texto do livro de outra forma que não a literal. Cena a cena tiradas de cada passagem, como numa fotonovela.
E diante desta constatação, eu julguei errônea e premeditadamente que o jogo estaria ganho; não havia como a refilmagem ser inferior ao original. Isso me encheu de alegria por antecipação. E com tristeza constatei que, de fato, eu "perdi a partida"... Como Zezé, eu esperei pelo meu "Raio-de-Luar cinematográfico". E me senti como menino diabo, esquecido por Deus sem motivos...
A trama foi transposta para alguma cidade de Minas Gerais (cuja identidade foi escondida mesmo após a pergunta direta da professora de Zezé, em sala de aula). O que aconteceu com o calor de Bangu? Vemos um Zezé andando de jaqueta(!) pelas ruas. Eu até entendo que o clima estivesse frio durante as filmagens (já que o interior de Minas é muito frio no inverno), mas aquele menino estava muito limpinho e arrumado demais para retratar um garoto que, no livro, mal teve ceia de Natal...
O menino que interpreta Zezé é até carismático, mas muito menos expressivo em sua revolta... E o Rei Luis parece um autômato, um ator cru demais para interpretar o papel. Fez falta ver um Zezé com semblante mais revoltado, mais debochado, mais moleque de rua. Em vez disso escolheram como ator um menino com todas as características do burguesinho Serginho, o amigo rico da bicicleta nova.
Porque Godóia virou uma pré-adolescente com cara de biscoito Trakinas? Onde foi parar a irmã madura, experiente e sofrida? Ela só manifesta alguma tristeza - muito mal, diga-se de passagem - na cena em que tenta consolar Zezé após a surra de Jandira. E passa o resto do filme sorrindo...
Eu teria chamado o John Woo para desacelerar todas as passagens emblemáticas do filme, que parecem ter sido compactadas por falta de verba. O que foi aquele meio frame representando o desabafo de Zezé na frente do pai pobre na manhã de natal? Que desperdício de passagens antológicas... Em vez dos "olhos gigantes" do pai (olhos que tomavam a tela do cinema Bangu), um vulto na porta do quarto que se esgueira casa adentro como se fosse o Batman procurando refugio nas sombras...
E o que aconteceu com o pai de Zezé? Virou esse galã de comercial de plano de saúde familiar, de voz macia com suas camisas xadrez coloridas bem passadas, como se fosse um ator global vindo das compras em Ipanema... Não convenceu.
E não me recordo de nenhuma passagem do livro dando a entender que o pai de Zezé tivesse problemas com bebida (ou vivesse no bar...)
O mesmo efeito me causou José de Abreu, naquele sotaque ioiô cujas nuances de pronúncia iam do lusitano ao gaúcho, como se não se decidisse sobre sua origem. Onde foi parar o Portuga bonachão? E o que foi aquele enquadramento na cena do sermão do "morcego"? Tentando apelar para a memória dos fãs de Avenida Brasil? (de acordo com comentários sobre esta postagem, o filme é anterior à novela. E a culpa pela cena tosca é do diretor, não dele...) Foi só nojento.
Faltaram passagens interessantíssimas. O aprendizado da leitura com Tio Edmundo. A travessia da Rio-Santos com Totoca. A bicicleta do amigo rico, Serginho. A confissão à professora do lanchinho compartilhado com a amiguinha pobre...
Mas sobraram denúncias politicamente corretas, numa tentativa de "corrigir" a trama original às vistas da atualidade: Zezé deixa de aparecer nu na cena da pescaria, mas aparece com hematomas após uma surra dos pais - coisa que faria qualquer adulto da atualidade tirar satisfações com os pais ou denunciá-los às autoridades - e a cena fica como uma mensagem vazia boiando no meio do filme ("ninguém é preso no livro, gente... Ih... Mas agora a cena já passou! Deixa pra lá! Ninguém vai perceber esse recado pela metade!"). E o mesmo volta a acontecer quando o médico analisa a febre psicológica de Zezé após a morte do Portuga. Os pais sem jeito trocando olhares culpados... e termina por ali. Ao menos não chamaram o Wagner Montes ou ligaram para o disque-denúncia!
E além do figurino fazendo merchandising de algum magazine brasileiro, o que aconteceu com a trilha sonora? O diretor parece ter se inspirado em Cinema Paradiso e encarregou algumas pessoas de imitar o genial Ennio Morricone, quase esmagando o pequeno Zezé com sua sonoridade desnecessariamente pesada para cenas de pouca intensidade.
Ao final da exibição do filme havia um grupinho, sentado na mesma fila, na sessão a que assisti, que puxou as palmas de uma platéia mista de curiosos perdidos na sessão e velhinhas entediadas fugindo de desenhos 3D. Triste...
Aos responsáveis pelo filme fica a pergunta: o que foi aquilo a que eu acabara de assistir???
A Zé Mauro, onde quer que esteja, fica o recado: não foi dessa vez que matei minhas saudades...
PS: Hoje, aos 19 de abril de 2013, descobri a possível motivação para a escolha do ator bochechudinho para o papel do Zezé. O menino é filho do cantor sertanejo Leonardo... Sem mais.